Pilar del Río
Partilhamos a conversa com Pilar del Río, jornalista, escritora, tradutora e presidenta da Fundação José Saramago. Esta partiu do recordar a atribuição do Prémio luso-espanhol de arte e cultura (2017), para se percorrer várias temáticas.
Pilar del Río. Jornalista, escritora, tradutora e presidenta da Fundação José Saramago. Foi em 1986 que, após ter lido os romances traduzidos para espanhol de José Saramago, conheceu o escritor — o primeiro de muitos passos para se tornar numa figura importante no panorama português, com uma ação necessária e visão acutilante, estava dado. Casaram-se dois anos depois, em 1988. Pilar integrou o projeto literário de Saramago, que se demarca, nomeadamente, por ser o único Nobel da Literatura português até hoje, tendo, inclusive, traduzido vários romances do escritor. Levantaram, ainda, o projeto comum que nunca perdeu de vista a luta em nome da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a atenção sobre os problemas ambientais derivados do aquecimento global: a Fundação José Saramago.
No dia 26 de maio de 2017, Pilar recebeu, na Biblioteca Nacional de Espanha, o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura, que distingue “um autor, pensador, criador ou intérprete vivo, ou uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, que, por intermédio da sua ação nas áreas das artes e da cultura, tenha contribuído significativamente para o reforço dos laços entre os dois Estados e para um maior conhecimento recíproco da criação ou do pensamento”.
Na cerimónia de entrega do prémio, Pilar, num discurso que pode ser lido na edição de junho de 2017 da revista digital Blimunda, disse: “a Península Ibérica é grande, nela cabem muitas culturas e idiomas para mostrar agradecimento e faltando um deles, os idiomas, ou delas, as culturas, esta distinção que me outorgam não seria possível. Quem vos fala não existiria sem a bendita diversidade que nos salva porque nos aproxima”.
No mesmo discurso, destaca a “inteligente pluralidade” como uma aprendizagem importante nesta “viagem pelas terras de Portugal”, pois, independentemente do local onde se encontre e do idioma em que se fale — português, espanhol ou outra língua latina — todas se enriquecem. Perante a distinção, deixou a promessa de continuar a procura pelos “méritos que me faltam para que o louco júri não fique mal visto”, firmando a importância de se atentar nas múltiplas personagens que geram vida e nos permitem avançar.
No dia em que se assinala o nascimento de José Saramago, 16 de novembro, partilhamos a conversa que tivemos com Pilar del Río, que partiu do recordar da atribuição do prémio para se percorrer temáticas como: “a indiferença em relação ao [país] vizinho”; o “estado de responsabilidade” em que vive a Fundação José Saramago perante os fenómenos que vão marcando a atualidade; o conceito de igualdade entre mulheres e homens no seio da sociedade; as possibilidades dilatadas que temos hoje para nos darmos tempo de ouvir o outro; a importância da construção cultural como justificação da independência dos países permitindo a reflexão sobre a luta pelo 1% para a cultura no Orçamento de Estado; a importância da atividade deste setor para a “continuação de Portugal” e para o “futuro pós-pandemia” ou a lembrança de Saramago sob o seu olhar.
Em 2016, foi galardoada com o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura, um prémio que destaca o trabalho de contribuição para o reforço dos laços entre Espanha, Portugal e América Latina. Como vê a evolução deste trabalho de “agente de comunicação entre culturas” que tem vindo a desenvolver?
Não saberia definir a evolução deste trabalho que eu chamaria de um privilégio. O que, sim, posso dizer é que ele forma parte da minha maneira de estar no mundo, não encontro uma função melhor do que servir como ponte, embora uma ponte pequena e humilde, que leva sempre a outros lugares e outras pessoas e por onde é possível passar a qualquer hora.
Historicamente, recebemos, desde cedo, narrativas de inimizade entre Portugal e Espanha. Como vê, hoje, a relação entre estes países vizinhos e onde é que eles se têm aproximado e divergido?
Mais do que inimizade aos espanhóis o que se inocula é a indiferença em relação ao vizinho. E aos portugueses, um certo desprezo pela Espanha, passar a caminho de França sem reparar, como se fosse um mal necessário. Ambas as sociedades foram vítimas de ideias imperiais, e dois impérios na mesma península era de mais… Depois, as respectivas ditaduras cultivaram toda a desconfiança que puderam e que até hoje sobrevive em alguns setores sociais presos ao passado. Em qualquer caso, agora somos milhões de pessoas que viajamos de um lado para o outro de uma inexistente “Raya”, sem fronteira, com curiosidade, simpatia e um respeito crescente. Nisto, estamos todos a ganhar.
A par da herança que nos deixou o trabalho literário de Saramago, houve um vasto trabalho de construção dum legado humanitário também pela Pilar, um projeto conjunto. Sabendo que não gosta de pensar no seu trabalho na Fundação como pôr-se no lugar de Saramago, mas sim no lugar da Fundação (Jornal de Letras, 2017), de que forma vê, hoje, o seu papel enquanto Presidenta da mesma?
O tempo presente é muito particular, estamos a sofrer os estragos de uma pandemia que nos tem deixado desconcertados e magoados. Na Fundação somos uma equipa e trabalhamos para que a cultura seja visível, por isso insistimos diariamente com propostas e realizações num setor que consideramos essencial, e fazemos isso a partir da imprescindível responsabilidade. Dizemos sempre que vivemos em “estado de responsabilidade” e que somos nós, cidadãos e cidadãs, que temos o dever de superar a expansão do vírus. É nisso que hoje trabalhamos, cultura e responsabilidade.
Existe um ditado português que diz: “por detrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”. Pensado sobre esse ditado, existe claramente uma mensagem de sobrevalorização do homem em detrimento da mulher — a mulher ocupa o papel de quem está “por detrás”. Porém, a Pilar nunca deixou que a chamassem “mulher de”, nem “viúva de”, por exemplo. Na sua perspetiva, de que formas se pode combater uma visão patriarcal que vemos incrustada na nossa sociedade, muitas vezes até em pormenores do dia a dia como num ditado popular levianamente proferido, em que não damos conta dos vícios que perpetuamos?
O patriarcado foi quem organizou a chamada “sabedoria popular” de forma injusta, sempre a impor um papel subalterno às mulheres, inclusive quando aparentemente pretendia que fosse um elogio ou um piropo, que é pior. O conceito de igualdade entre mulheres e homens não existiu ao longo da história, tão pouco agora está incrustado no seio da sociedade e das consciências não-militantes. Pessoalmente não entendo isso de estar “por detrás” ou “à frente”, o importante é que cada pessoa possa escolher, desenvolver-se, cuidar e cuidar-se, que nenhuma norma patriarcal catalogue as pessoas pelo seu sexo, condição ou opção. A grandeza de cada ser humano não tem que ver com o brilho social ou o sucesso, mas sim com a dignidade e os valores humanos.
A Fundação tem continuado um caminho de defesa dos Direitos Humanos, assim como dos Deveres, bem presente no legado humanista de Saramago, desde logo com o discurso de receção do Nobel. Sabendo que são muitos os direitos a serem violados diariamente, que seres humanos têm tentado levantar a cabeça, sem sucesso, e que gostaria de destacar, neste momento?
Talvez a pandemia nos tenha exacerbado a sensibilidade, mas parece-me que quem não esteja pelo bem comum acaba por entorpecer o desenvolvimento da humanidade no seu conjunto… E sim, há pessoas e instituições no mundo que têm como bandeira os direitos humanos e essa é a única aristocracia que reconheço: professores que se empenham em transmitir valores em contrapartida ao egoísmo e à indiferença, centros cívicos que não se rendem, voluntários aqui e ali, ativistas que veem mais longe do que os acomodados e os resignados. Em definitivo, destaco, para responder à sua pergunta, aqueles que defendem que a sociedade deve estar a serviço das pessoas e não as pessoas a serviço de grupos e normas que se apoderam da sociedade em benefício próprio e impõem, legislam, sancionam e condenam. Falo de regimes políticos não democráticos, de religiões, de sistemas económicos, de modos e até de modas que não têm os Direitos Humanos como base e objetivo.
Penso que esse caminho humanista surge em estreita relação com a capacidade de ouvir. Vivemos o nosso dia a dia, numa maioria, com demasiada pressa. Esse ritmo faz-nos descurar momentos importantes como o de saber parar e ouvir o outro. A Pilar começou por ser jornalista e, como tal, ouvir atentamente as histórias para depois as contar fazia parte da sua rotina. De que forma contaria a relação que hoje temos com o tempo e, em particular, para ouvir? Que consequências advêm dessa relação? Será a alegada falta de tempo para ouvir, por entre a aceleração dos dias, uma tentativa vã de justificar uma vida sustentada na indiferença?
Nunca como hoje tivemos tantas possibilidades para ouvir: estamos em casa e chegam-nos vozes pedindo socorro de vários continentes, ou de um bote no mar. Partilhamos em direto a alegria de uma mulher a quem o Nobel acaba de ser atribuído, assistimos a um concerto que está a acontecer noutro continente ou uma sessão na ONU. Podemos ser receptores de gritos e sussurros e podemos emitir também os nossos, consciente de que ao fazê-lo estamos a sustentar o mundo na sua órbita. Se não o fazemos e optamos pela indiferença talvez seja por medo do nosso poder pessoal, da nossa capacidade de construir. A cidade existe para os encontros, não para que blindemos as portas de casa, a tecnologia está para ampliar horizontes não para limitar encontros pessoais, a longevidade não é para que sejamos enterrados em vida, é para viver de outra maneira, inventando-se… Não compro o relato de que não temos tempo, talvez não o organizemos bem porque a nossa escala de valores, onde a generosidade e a coragem são necessárias, esteja confusa.
A Pilar escolheu ter nacionalidade portuguesa, o que significa que paga os seus impostos neste país. Olhando para o orçamento de Estado, que continua sem perfazer 1% para a Cultura, que reflexões tal facto lhe suscita acerca da forma como o nosso Estado tem vindo a alocar/ gastar dinheiro?
Considero que a cultura é um valor essencial e que se não for pela construção cultural que cada país é, não vale a pena termos países independentes. Distinguimo-nos uns dos outros pelas nossas culturas, e por elas serem diferentes – como os instrumentos musicais - é que se realizam concertos mundiais. Se todos os países fossem iguais, sobrariam as bandeiras e os hinos, uma multinacional poderia ocupar-se da gestão do país e ponto. Não é assim, os países definem-se pela cultura – arte, literatura, música, arquitetura, memória – e é a cultura que lhes dá personalidade e que os representa. Acho que sem pelo menos 1% não poderemos participar na reconstrução do mundo plural, livre e democrático que este momento exige. Se apostamos por um Portugal grande, com capacidade de dizer quem é, é preciso apostar pela sua cultura, mantê-la, estimulá-la, defendê-la e fazê-la crescer. Não somos um bairro de um sistema, somos uma sociedade com personalidade, uma construção histórica com capacidade de diálogo com outras. Acho que é mesquinho falar apenas de 1%, a cultura é essencial na continuação de Portugal e no futuro pós-pandemia. Não falo de assistencialismo, que também é necessário, vou mais longe, trata-se da manutenção do país que somos. Nunca como agora exige-se e espera-se tanto do Governo, porque nunca tivemos uma crise que nos pudesse apequenar desta maneira.
Numa entrevista, em 2017, ao Expresso, refere que chegou a Portugal como o “apêndice” de um homem. Passados estes anos, acredita, inclusive pelo trabalho que tem desenvolvido como Presidenta da Fundação José Saramago, que o nome Pilar del Río já integra a memória dos portugueses?
Falar da memória dos portugueses seria como falar com todas as letras, em maiúscula, e não é o caso… Espero, isso sim, estar na memória e no coração de algumas pessoas e ser querida por elas tanto como eu as quero. Espero e desejo isto.
Nas comemorações dos 20 anos da atribuição do Prémio Nobel a José Saramago, Jorge Vaz de Carvalho conduziu uma palestra na Fundação em que nos levou numa viagem pela ópera Blimunda. Nessa mesma apresentação, Jorge, pensando na história de amor de Blimunda e Baltazar, disse: “Isto é o que acontece aos grandes amores: nunca se perdem. E exemplo disso é o amor de Saramago e Pilar”. Hoje, assinalamos o dia de nascimento de José Saramago. Quem era Saramago aos seus olhos?
Um ser humano inteligente, trabalhador, valente, com o sentido de humor ativo nas 24 horas do dia, curioso como nunca conheci ninguém na vida, livre com todas as liberdades do mundo, contrário a todos os dogmas políticos, religiosos, humanos e sociais. Um homem que enfrentou as grandes questões sem medo e com um estilo próprio: as religiões, as pátrias, a morte, a responsabilidade, a culpa, a civilização, as convenções. É um grande escritor do nosso tempo, autor de uma obra que nos singulariza, aos portugueses e aos seus leitores. Foi um ativista das grandes causas do mundo contemporâneo, um ser tão singular que é preciso ter distância para entender as suas posições, alheias a cânones literários, sociais e convencionais. Foi o homem que quis ser, humanista, feminista, progressista, o piloto que pôde navegar a Península Ibérica mar adentro até novos encontros, ideias e sonhos, aquele que anunciou a necessidade da Bacia Cultural do Atlântico Sul, um sábio.
A Pilar ocupa os seus dias com o trabalho da Fundação, continuando o projeto comum que construiu com Saramago, que já não pode produzir novos discursos/pensamentos, cabendo-lhe esse papel. Como lida com essa responsabilidade?
De maneira muito simples: trabalhando com a obra de José Saramago, que cada dia propõe um aspecto novo, atual e necessário. Ouvindo e lendo aqueles que continuam a ampliar o mundo: A Fundação começou com José Saramago, mas continua em outros autores, somos uma instituição privada que tem o público no seu ADN, seja na cultura como nos valores universais. Foram estes valores os que nos levaram a criar a Fundação e nela colocar o que tínhamos e éramos.
Olhando para todo o trabalho que tem desenvolvido, nos mais diversos âmbitos, quando o cansaço se impõe, onde vai buscar alento para, ainda assim, não parar de trabalhar?
No trabalho que outras pessoas fazem no mundo. Os levantados do chão de todos os continentes, seres humanos que cada dia amanhecem com desejo de ter condições – que são direitos – para eles e para os seus filhos, tantas vezes condenados desde que nascem, e isso deve ser uma dor insuportável. Essas pessoas e essas urgências eliminam o termo cansaço do meu dicionário vital. E o que digo não é demagogia, é uma forma de sentir-me neste mundo e a que não vou renunciar, é o meu privilégio.
G. - Em 2017, dizia ainda ao Expresso que é uma mulher que “todos os dias, ao acordar, pensa no que quer fazer da sua vida”. Hoje, quando acordou, que conclusões tirou acerca do que quer fazer, para já?
Que devia responder a esta entrevista e ouvir as notícias do mundo. Preparar uma conferência sobre a Declaração dos Deveres Humanos para Sevilha e escrever para o grupo de redatores deste documento, que estão no México, para tratar das iniciativas que estão em andamento nestes tempos de pandemia e cegueira. Também ver se já há vacina contra a gripe, falar com familiares de pessoas contaminadas pelo coronavírus que precisam de ânimo. Comentar artigos de vários amigos no Twitter. E, obviamente, cumprir com os compromissos da Fundação e com as funções de dona de casa. E, pelo meio de tudo isso, procurar ter a consciência em paz e ser o mais feliz possível. É tudo.