Ignacio García
Partilhamos a conversa com Ignacio García, diretor do Festival de Teatro Clássico de Almagro, “A melhor maneira de preservar a cultura é contaminá-la”.
A proposta da 44.ª edição do Festival Internacional de Teatro Clássico de Almagro, a acontecer ao longo de todo o mês de julho de 2021, revisita a herança cultural ibérica do Século de Ouro, que une Espanha e Portugal no auge do teatro clássico e do pensamento barroco. O Festival, fundado nos anos 70 entre as paredes do Corral de Comedias, é hoje uma construção coletiva que se concretiza com a visita internacional de inúmeros artistas, companhias, criadores e públicos para, juntos, repensar e reinterpretar o teatro clássico numa visão social contemporânea.
É na democratização do erro que encontramos a génese do maior centro mundial de criação teatral e pensamento dos séculos XVI e XVII do universo hispânico, representativa da vontade de fazer do Festival de Almagro, um projeto comunitário, igualitário, justo e acessível a todos os que desejam experienciar o teatro, os espetáculos, a música, a dança, as exposições e as formações, que compõem a programação anual.
Em 2021, o país convidado a participar no Festival de Almagro é Portugal, que leva a riqueza cultural e histórica do Século de Ouro português para lá fronteiras. De Gil Vicente a Camões, muitos são os poetas e escritores partilhados entre ambos os países, aos quais se juntam obras e expressões artísticas que ditam uma relação peninsular única e fortemente marcada pelas temáticas sociais do passado e do presente.
O diálogo ibérico é reforçado ao pormenor na programação, com a presença de companhias portuguesas e com a exibição das peças Embarcação do Inferno, pela Escola da Noite e Centro Dramático de Évora, Castro, que leva ao palco de Almagro o Teatro Nacional São João, e A Contenda dos Labradores de Caldelas ou Entremés Famoso sobre da Pesca do Río Miño, que une o Centro Dramático Galego e o Teatro de Braga. A programação da 44.ª edição foi apresentada ontem, na Embaixada de Espanha, em Lisboa, e pela primeira vez, fora do país de origem o festival.
Ignacio García, diretor do Festival de Almagro, fala-nos da certeza de que “o teatro clássico é um lugar de todos, que se quer adaptado, livre e justo”, conferindo um ambiente de coexistência e revolução artística igualitário, como um ténue fio condutor da contemporaneidade.
Que importância tem a preservação da identidade cultural de um país, neste caso concreto, no Teatro Clássico do Século de Ouro espanhol?
O nosso Século de Ouro é um momento claro, não só na história dos espetáculos, mas do país. Um momento de cadência imperial, no qual os cidadãos decidem que querem criar uma nova expressão cultural. O Corral de Comedias é o lugar onde aristocratas, mendigos, homens e mulheres, contam as suas histórias. É um lugar democrático onde todos podem falar, onde antes se representavam comédias escritas por homens e mulheres, diferente do teatro britânico e francês, no qual as mulheres eram proibidas de escrever. Este conceito de convivência e liberdade não existia nas ruas, nos palácios, noutros espaços. São estes valores que fazem com que seja importante divulgar e preservar este património. As próprias peças falam sobre a honra, a justiça, a solidariedade, a liberdade. É essa a herança, a identidade, que queremos manter. Queremos defender este teatro comunitário e social, que foi pensado por toda a sociedade. E nós somos fruto dessa luta social. Mesmo do ponto de vista profissional, o Século de Ouro é a primeira experiência europeia em que a apresentação de espetáculos não depende de um governante, de um bispo, de um imperador ou rei, nem depende de dádivas. Pela primeira vez, os espetadores pagaram os seus bilhetes e permitiram a emancipação das companhias.
Almagro é a capital, a reserva natural do Século de Ouro, de todas estas ideias. Não numa visão imperialista e antiga destes valores, mas sim pelos novos valores de convivência, liberdade, justiça social, capacidade de defender os artistas pelo seu trabalho. Não somos um festival de teatro clássico, somos um festival de teatro contemporâneo sobre ideias e textos clássico. Não só textos clássicos, mas poesia, música, dança, tudo é reescrito de forma contemporânea, num modelo aberto socialmente, mais acessível.
Como é que hoje, enquanto Festival, procuram continuar a defender esses valores?
É o nosso quarto ano na direção do Festival de Almagro e tentamos explorar todos os limites do Século de Ouro. Refiro alguns exemplos muito concretos: temos o teatro com pessoas cegas, uma percentagem igualitária de mulheres em todas as áreas do festival, defendemos um reportório em várias línguas, sem ser espanhol. Pela primeira vez, temos feito poesia escrita em línguas indígenas. Todos os espanhóis estudam na escola que os melhores autores do Século de Ouro são o Lope de Vega, Calderón de la Barca e Tirso de Molina. Os três são homens, brancos, castelhanos e padres. Quem não era homem, branco, castelhano e católico não podia fazer nada no Século de Ouro? Onde estavam as mulheres, os que nasceram em Valença, os não católicos? O que nós queremos é que exista uma visão de uma sociedade real e representativa. Se falarmos de mulheres, temos os exemplos de Ana Caro de Mallén, mulher mourisca e andaluza, Sóror Juana Inés de la Cruz, mulher mexicana, mestiça que falava espanhol e indígena.
Confesso que está a ser um sucesso porque muita gente começa a aproximar-se de Almagro, exatamente porque compreende que, entre todos, está a ser construída uma nova realidade teatral, um novo cânone. A maneira de preservar uma cultura é contaminá-la. A maneira de tornar os clássicos vivos é fazê-los de maneira diferente, e só assim eles permanecem vivos e continuam a falar para nós.
Tem sido fácil criar uma nova visão do Século de Ouro na contemporaneidade, tendo em conta esses novos desafios sociais, igualdade, acessibilidade?
Sim, porque é uma missão feita por muitos, abrimos as portas para que outros dessem as suas visões. O filosofo latino, Boécio, diz que “o que faz brilhar o dinheiro não é atesourá-lo, mas gastá-lo”. Nós somos o mesmo, o que faz brilhar os clássicos não é tê-los guardados, é riscá-los, errar com eles. Por isso propomos uma democratização do erro, que é o contrário do que existia antes. Por exemplo, nós recebemos há dois anos o Prémio Rainha Letizia por sermos a instituição cultural espanhola mais acessível para pessoas com incapacidade visual e auditiva. Nós não dissemos a essas pessoas como deviam desfrutar do teatro, foram eles que nos disseram. Nós temos o passeio tátil mais rico de Espanha porque as pessoas cegas disseram “temos o sonho de ir ao teatro e tocar na cenografia, nos tecidos, nos figurinos com o ator dentro, porque quando tocamos no tecido, ouvimos a voz do ator, na ida ao teatro associamos a voz e o tecido”. Não inventamos nada, apenas recebemos esses estímulos e passamos isso aos atores a à equipa.
Este ano, tendo Portugal como convidado, não somos nós a dizer como devem interpretar o Século de Ouro, quase de uma forma colonialista e imperial. Pelo contrário, somos nós que, ao convidar o país, queremos ser surpreendidos pela nova visão. Haverá uma coprodução com o Teatro de Braga e o Centro Dramático Galego sobre os pescadores do rio Minho. Todos vão ficar surpreendidos com uma peça bilingue e muito moderna, mesmo escrita há 350 anos. Também colaboramos muito com o Instituto da Mulher, nesta missão de dar visibilidade às mulheres que escreviam. Por exemplo, este ano, será uma mulher a ditar o tema do Festival. O verso de Sor Ana De La Trinidad diz, “e o tempo breve passarás em flores”, que é o convite a que o público viva os prazeres do teatro, da música da comida, quando vem a Almagro.
Na verdade, a revolução não é nossa, permitimos que outros territórios, estilos, músicos, dançarinos, atores, venham dar a sua visão mais ampla e diferente. É algo construído por todos ao longo do tempo.
A situação pandémica veio alterar toda a construção do festival. Falava do passeio tátil, isso agora não será possível da mesma forma.
Exatamente. A verdade é que a pandemia mudou tudo, mas o maior desafio será recuperar as linhas fundamentais do festival, que já estamos a fazer nesta 44.ª edição. Este ano, voltamos a ter o Barroco Infantil, para crianças, e também voltamos a ter o país convidado, Portugal. Decidimos ir aos vizinhos [risos]. Na pandemia temos feito isso, pedir ajuda a quem temos por perto. Decidimos que seria bom visitar essa ideia ibérica e de comunidade de vizinhos que pensam juntos como sair desta dificuldade. Voltamos à proximidade com o espectador, e começamos um caminho de esperança. Esta situação faz-nos pensar como queremos fazer teatro depois. Queremos um espaço de reflexão conjunta, e esta dimensão ibérica, esta surpresa portuguesa, é ideal agora.
Como vê a relação cultural entre os dois países ibéricos, Espanha e Portugal, que partilharam o Século de Ouro do teatro e da literatura?
É incrível quão longe estamos culturalmente. Um dos textos mais conhecidos do Século de Ouros, El Perro del Hortelano, não está trazido em português. Os espanhóis não sabem quem é Camões, mesmo que ele tenha escrito em espanhol. Não sabem que alguns dos grandes nomes desse período escreviam e falavam perfeitamente português. Nesse sentido, também fizemos o esforço de descentralizar a visão cultural portuguesa. Queremos dar a conhecer a Almagro o que Portugal tem por dentro. Acho que todos temos a ganhar com o facto de conhecer o outro. Entre Espanha e Portugal, há um grande desconhecimento, um diálogo de surdos. Não queremos ver-nos, não queremos falar-nos, não queremos fazer coisas juntos.
Para contrariar esse aspeto, o que podemos esperar do festival nesta dimensão que quer o diálogo entre as duas línguas?
De facto, a ideia não é os portugueses virem fazer o seu reportório, eles decidem, mas nós estimulamos a que as peças e as companhias estabeleçam esse diálogo. Temos duas atividades muito importantes neste aspeto, a primeira são os Diálogos Ibéricos, com a Associação Portuguesa de Cenografia, que promove um encontro entre artistas portugueses e espanhóis que fizeram as mesmas peças do Século de Ouro. Um espaço de encontro para se conhecerem, verem como cada um fez. E também temos o programa da Universidad Castilla la Mancha, as Jornadas Universitárias, que vão refletir sobre a ideia do “Século de Ouro Ibérico”.
O cartaz do Festival é do português José Manuel Castanheira, já aí estamos a dialogar. Outro exemplo, o diálogo da Companhia Galega e de Braga, o Teatro Nacional São João com a peça Castro. Gosto sempre de referir isto porque é a peça mais portuguesa do Século de Ouro espanhol, e é a mais espanhola das lendas portuguesas. O autor Gil Vicente, que junta Companhias de Coimbra e Évora, consideramos também espanhol, pelas peças bilingues. Fechamos o programa com o concerto dos Músicos do Tejo, com canções portuguesas e espanholas. Curioso que, o tema A Folia Espanhola, mais conhecido do século XVI, é de origem portuguesa. Também teremos um recital sobre mulheres escritoras dos dois países e uma mostra de pinturas do Castanheira com 32 obras de mulheres de Almagro, acompanhadas por um poema uma escritora portuguesa ou espanhola. O diálogo é contínuo. Não e um festival espanhol com produtos portugueses, é mestiço.
(Acrescentamos a esse diálogo a peça Reinar después de Morir, uma coprodução da Companhia Nacional de Teatro Clássico e da Companhia Teatro de Almada. Ou mesmo José Saramago, que viu adaptada a obra da História do Cerco de Lisboa em castelhano e português.
Eu fiz essa produção em Almada, também com artistas portugueses. Aí temos o grande exemplo do pensamento ibérico, José Saramago, que sonha com essa identidade comum. Também fiz o Reinar después de Morir, a coprodução com metade criativos espanhóis e outra metade portugueses, com apresentação nos dois países. Depois trouxemos os atores portugueses a Espanha, estamos sempre nesta ideia de contaminação cultural.
Que vantagens se adquire desse intercâmbio cultural e o que há de surpreendente na portugalidade?
Nem imaginas o sucesso que fizeram os atores portugueses. Quando vieram os atores portugueses, os atores espanhóis confessaram-me que foi muito bonito, que nunca fariam daquela forma a interpretação. Foi muito bom essa comunhão e encontro entre os atores que estavam a fazer a mesma personagem, é possível ver o que somos e o que podemos fazer juntos. Esta presença de Portugal no Festival tem que ver com a ideia de empoderamento e dignidade artística. Estou farto de que os espanhóis tenham uma atitude de superioridade perante os portugueses, que não é verdade. Queremos pôr portugueses e espanhóis a dialogar, a fazer coisas juntos.
Eu tive a sorte de ter encenado a mesma peça com atores dos dois países e reparo que a sensibilidade é muito diferente. Acho que a literatura portuguesa tem sempre uma melancolia, uma delicadeza que os castelhanos não têm, são mais fortes e brutos. Não é melhor, nem pior, apenas é mais delicado em português, mais bruto em castelhano. É interessante que a sonoridade da língua tenha um caráter mais doce, mais mórbido, mais sensual. E isso irá contaminar todo o Festival.
Neste ano, a mulher será figura central do Festival de Almagro, começando até pelo verso que inspira toda a programação. Fale-nos de como aplicam essa dimensão nesta 44ª. edição
Não podemos pensar na sociedade sem cultura, e na cultura sem sociedade. O tema da mulher, felizmente para mim, enquanto artista, não é um tema novo. Há 20 anos que encenei pela primeira vez uma peça de uma autora, Sor Juana Inés de la Cruz. Sempre considerei tudo insuportavelmente machista, 15 peças escritas por homens, apenas uma por uma mulher, dez atores, duas atrizes. A verdade é que não sou eu a dar espaço às mulheres, elas têm o seu espaço. Não é uma dádiva. Não sou eu, enquanto diretor, que dou espaço. O Instituto da Mulher, que é uma espécie de auditor do feminismo no Festival Almagro, diz que é muito importante, no trabalho do festival com as crianças e jovens, que os participantes sejam paritários. E mesmo nas convocatórias de Companhias, cinco em dez têm de estar encenadas por mulheres. Nós aceitamos a opinião daqueles que sabem mais, neste caso o Instituto da Mulher, porque democratizamos o erro. O facto de ser diretor não faz com que eu saiba mais sobre feminismo, eu apenas irei aplica a ideia de quem sabe mais sobre essa dimensão. Os portugueses saberão melhor o que é o Século de Ouro português, as mulheres saberão melhor o que é ser mulher no Século de Ouro.
Voltamos à construção coletiva e ao encontro, que terá sempre a resposta para os temas que o Festival deve conter, nesse transporte do passado para o presente.
Sim, há linhas técnicas que não mudam todos os anos. Mas algumas são sempre importantes, e fogem à questão de que tudo caduca muito rápido no mundo contemporâneo. O caráter feminista, igualitário, americanista, não colonial, o caráter ibérico, a acessibilidade, inclusão. Todas são linhas que nunca vamos renunciar no Festival de Almagro, depende de com quem fazemos e como fazemos. São princípios fundamentais a liberdade, um conceito que se alterou muito hoje em dia, a justiça social, o valor da cidadania e da comunidade. As respostas serão sempre coletivas, não vou ser eu a decidir como será o festival, vamos todos. O país convidado, Portugal, a região, a instituição… não é uma posição vertical porque acreditamos nessa ideia democrática do erro, que se torna essencial no festival. Todos somos livres para errar, mesmo naquilo que sabemos mais, porque assim acertaremos mais até conseguir um triunfo coletivo.