Impressões do Cinema Espanhol em Democracia
O ciclo comissariado por Alberto Berzosa explora o cinema espanhol da democracia, abordando conceitos, valores sociais e traumas históricos em cinco temas: Modernidade à Espanhola, Reconversão Industrial, Memórias de Violência, Género e Sexualidade, e Passado Colonial, cada um representado por um filme.
Prosseguindo a colaboração iniciada em 2011 com a Mostra Espanha, a Cinemateca associa-se ao programa Portugal-Espanha: 50 Anos de Democracia, promovido pelo Ministério da Cultura espanhol em parceria com a Embaixada de Espanha em Lisboa.
Modernidade à Espanhola
A primeira linha, Modernidade à Espanhola, chama a atenção para a forma como o cinema tem contribuído para a fabricação dos imaginários positivos que relacionam o desenvolvimento turístico com as paisagens da modernidade. O boom económico, a abertura, o contacto com estrangeiros e o relaxamento dos costumes e da moral nacional-católica concentraram-se em locais da Costa del Sol, como Torremolinos. Mas, com a passagem dos anos 60 e 70, estas promessas de modernidade tornaram-se obsoletas, como se pode observar em El puente (1977), onde Juan Antonio Bardem oferece uma imagem taciturna e monótona dos mitos modernizadores, como pano de fundo para o percurso de aprendizagem.
El puente
- 14 de novembro às 19:00h. Sala M. Félix Ribeiro.
- 19 de novembro às 15:30h. Sala M. Félix Ribeiro.
- De Juan Antonio Bardem, Espanha, 1977, 104 minutos. Com Alfredo Landa, Mara Vila, Miguel Ángel Aristu.
- Legendado em portugués.
El puente é um roadmovie protagonizado por Juan, um mecânico madrileno que, movido pela promessa de uns dias de sol, festa, praia e mulheres estrangeiras, ao final do dia decide ir na sua mota até à Costa del Sol sem se preocupar com a longa viagem. “Faz isso pela tite”, diz a si mesmo. Ao longo do percurso, uma série de encontros levam-no a conhecer pessoas e a viver situações típicas de uma sociedade espanhola em plena mudança, contraditória e plural, alheias aos mitos franquistas sobre a modernização e o turismo. O problema do desemprego, a situação do campesinato, os excessos da burguesia, a emigração ou a contracultura fazem parte do percurso de aprendizagem do protagonista no seu caminho para a praia da democracia.
Reconversão Industrial
Com o objetivo de se adaptar às exigências de um mundo que começava a globalizar-se, com o fim da Transição e a entrada na Comunidade Económica Europeia (1986), Espanha empreendeu uma forte reestruturação do seu sistema produtivo. Isto serviu para aprofundar a modernização industrial do país, mas ao mesmo tempo foi um rude golpe para o movimento operário, que tinha sido um dos agentes mais ativos e mobilizados contra o franquismo e durante a Transição. A linha Reconversão Industrial é sobre tudo isto, representada pelo documentário El año del descubrimento (2020), de Luis López Carrasco, que analisa o caso particular do desmantelamento do tecido industrial em Cartagena (Murcia) em 1992.
El año del descubrimento
- 15 de novembro às 18:00h. Sala M. Félix Ribeiro.
- 22 de novembro às 15:30h. Sala M. Félix Ribeiro.
- De Luis López Carrasco, Espanha / Suíça, 2020, 200 minutos.
- Legendado em portugués.
Em El año del descubrimento, Luis López Carrasco disseca as contradições presentes em Espanha em 1992 e identifica os seus efeitos nas gerações futuras. Nesse ano, completou-se a imagem comemorativa da Espanha moderna e democrática, que acolheu a Exposição Universal de Sevilha, os Jogos Olímpicos de Barcelona e organizou o V Centenário do Descobrimento da América. Uma outra imagem da mesma imagem mostra os resultados do processo de reconversão industrial iniciado na década de 80: encerramento de empresas, desmantelamento da mobilização laboral e transformação para sempre das condições de trabalho. No documentário, os protagonistas e as testemunhas da agitação social que este processo provocou em Cartagena (Múrcia) recordam e discutem os acontecimentos, as imagens e a sua memória.
Memórias da Violência
Talvez um dos imaginários audiovisuais com maior presença no debate público desde o fim da censura em Espanha seja o da linha das Memórias da Violência, centrado fundamentalmente na memória das vítimas da Guerra Civil (1936-1939) e, em menor grau, daqueles retaliados na subsequente repressão franquista. O filme selecionado é El silencio de otros (2018), de Almudena Carrecedo e Robert Bahar, que testemunha a luta, ao mesmo tempo precária e irreprimível, dos familiares dos republicanos que permanecem enterrados em valas comuns por toda a Espanha e nas pessoas condenadas pelo regime pela sua militância anti-Franco.
El silencio de otros
- 18 de novembro às 21:30h. Sala M. Félix Ribeiro.
- 21 de novembro às 15:30h. Sala M. Félix Ribeiro.
- De Robert Bahar, Almudena Carracedo, Espanha / Canadá / Estados Unidos, 2018, 96 minutos.
- Legendado em portugués.
O Silêncio dos outros é um documentário sobre a memória histórica em Espanha, que mostra a resistência em se deixar levar pela corrente do círculo vicioso do silêncio, por parte dos retaliados e familiares das vítimas da Guerra Civil e do Franquismo. Encorajados pelos ecos que ainda ressoam nas masmorras da Direção-Geral da Polícia, onde milhares de militantes antifranquistas foram torturados, e pelo barulho que emana das valas comuns onde repousam os restos mortais dos republicanos assassinados, vários grupos de base, como a Associação para a Recuperação da Memória Histórica ou La Comuna, entre outras, conseguiram lançar a “Queixa Argentina” e começaram a quebrar o círculo.
Género e Sexualidade
A mobilização cidadã protagoniza também a linha Género e Sexualidade, que surge da organização social pela igualdade real entre mulheres e homens, e pela liberdade sexual e de género que se iniciou na década de 1970 e se consolidou na década de 2000 paralelamente ao desenvolvimento de políticas e de Estado. 80 egunean (2010), de José Mari Goenaga e Jon Garaño, é uma peça pioneira que, com subtileza e contenção, mostra os canais e as estradas bloqueadas por onde flui o desejo lésbico nas idosas.
80 egunean
- 15 de novembro às 15:30h. Sala M. Félix Ribeiro.
- De José Mari Goenaga, Jon Garaño, Espanha, 2010, 104 minutos. com Itziar Aizpuru, Mariasun Pagoaga, José Ramón Argoitia.
- Legendado em portugués.
80 egunean ocupa um lugar único entre a filmografia que acompanha os processos sociais e políticos em prol da libertação sexual e de género, porque se centra num lugar invulgar: o amor entre as pessoas mais velhas. O desejo das duas protagonistas, mulheres com mais de 70 anos, atravessa o filme, entre a discrição e a brincadeira, ora escondido em quintas rurais, em fotografias sépia ou nos arrependimentos de quem não ousou sair do armário, e outros em voz alta, sob a forma de risos, brindes em copos e beijos em ilhas que parecem distantes.
Passado colonial
Por fim, a linha que trata o Passado colonial espanhol no continente africano aborda um tema que foi popular no governo de Franco, sobretudo em documentários e filmes de soldados e clérigos, mas que tinha perdido relevância nos primeiros anos da etapa democrática. Pelo menos até que vozes críticas como Cecilia Bartolomé devolveram a memória colonial ao debate público com Lejos de África (1996), uma ficção que encarna as memórias da adolescência da própria realizadora na Guiné Equatorial.
Lejos de África
- 18 de novembro às 19:30h. Sala Luís de Pina.
- 20 de novembro às 15:30h. Sala Luís de Pina.
- De Cecilia Bartolomé, com Alicia Bogo, Xabier Elorriaga, Isabel Mestres, Espanha / Cuba, 1996, 115 minutos.
- Legendado em portugués.
Em Lejos de África, Cecilia Bartolomé colocou imagens e sons na memória do colonialismo espanhol na Guiné Equatorial. Desde a independência das últimas colónias, as relações entre Espanha e África no cinema não desapareceram por completo, mas foram relegadas para meras referências contextuais não problemáticas. Bartolomé quebrou esta dinâmica neste filme, recorrendo à matéria-prima das suas memórias de infância e adolescência, para narrar a intra-história da vida colonial através da relação de duas meninas, uma negra e outra branca, com nostalgia, mas sem condescendência, e com plena consciência dos desastres que sustentam qualquer regime colonial.